ATA DA SEGUNDA SESSÃO ESPECIAL DA SEGUNDA SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA DÉCIMA PRIMEIRA LEGISLATURA, EM 03.05.1994.

 

 


Aos três dias do mês de maio do ano de mil novecentos e noventa e quatro reuniu-se, na Sala de Sessões do Palácio Aloísio Filho, a Câmara Municipal de Porto Alegre, em sua Segunda Sessão Especial da Segunda Sessão Legislativa Ordinária da Décima Primeira Legislatura. Às dezessete horas e doze minutos, constatada a existência de “quorum”, o Senhor Presidente declarou abertos os trabalhos da presente Sessão Especial, destinada à entrega do Título Honorífico de Cidadão de Porto Alegre ao Senhor Carlos Alberto Libanio Christo - Frei Betto, conforme Requerimento nº 100/94 (Processo nº 778/94), aprovado pela Casa, de autoria do Vereador Décio Schauren. Compuseram a MESA: Vereador Airto Ferronato, 1º Vice-Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, no exercício da presidência; Doutor Tarso Genro, Prefeito Municipal de Porto Alegre; Doutor Alberto Weingartner, representante da Procuradoria Geral de Justiça; Doutor José Clóvis de Azevedo, Secretário Substituto de Educação do Município; Jornalista Firmino Cardoso, representante da Associação Riograndense de Imprensa; Doutora Lenora Ulrich, Diretora-Geral do Departamento de Esgotos Pluviais; Vereador Décio Schauren, na ocasião, Secretário “ad hoc”. A seguir, o Senhor Presidente convidou a todos para, de pé, ouvirem a execução do Hino Nacional e, em continuidade, concedeu a palavra aos Vereadores para se pronunciarem acerca da solenidade. O Vereador Décio Schauren, em nome das Bancadas do PT, PDT, PMDB, PTB, PC do B, PFL, PP e PPS, discorreu sobre a importância do Título hoje entregue pela Casa, falando da opção feita pelo Homenageado, de participação ativa e constante na defesa da justiça social e na busca da democracia para o País. Ainda, leu trechos do livro “Batismo de Sangue”, de autoria de Frei Betto, onde é relatada sua atuação durante o período da ditadura militar no Brasil. O Vereador Antonio Hohlfeldt, em nome da Bancada do PSDB, disse ser o Título de Cidadão de Porto Alegre uma forma da Cidade demonstrar o apreço que sente por um homem que nunca abdicou de suas idéias, falando sobre a atuação política e religiosa de Frei Betto e sua importância dentro da história brasileira. Finalizando, lembrou encontros que manteve com o Homenageado e, também, a atuação do mesmo na área da literatura, especialmente da literatura infantil. Após, o Senhor Presidente convidou a todos para, de pé, assistirem à entrega, pelo Vereador Décio Schauren e pelo Prefeito Tarso Genro, do Título e da Medalha referentes ao Título Honorídico de Cidadão de Porto ao Senhor Carlos Alberto Libanio Christo - Frei Betto. Em continuidade, concedeu a palavra ao Homenageado, que agradeceu o Título recebido da Casa, falando sobre sua participação na política brasileira, principalmente durante o período militar, e analisando o significado da cidadania porto-alegrense que hoje assume oficialmente. Durante a Sessão, o Senhor Presidente registrou o recebimento de correspondência, relativa a presente solenidade, da Senhora Mila Cauduro, Secretária Estadual da Cultura e registrou as presenças, no Plenário, dos Senhores Gerson Almeida, Secretário Municipal do Meio Ambiente, Cesar Alvarez, Secretário do Governo Municipal, João Carlos Vasconcelos, Presidente da Empresa Porto-Alegrense de Turismo, Esther Pilla Grossi, ex-Secretária Municipal da Educação e atual Presidente do GEMPA, Íria Charão, Presidente do PT Municipal de Porto Alegre, Dercy Furtado, ex-Deputada e ex-Diretora-Geral desta Casa, Carlos Salzano Vieira da Cunha, Presidente Estadual do Movimento Familiar Cristão, Selvino Heck, ex-Deputado Estadual, Imira Machado da Rosa, Coordenadora da Renovação Cristão do Brasil, Irmão Antônio Cechim, Irmão Marista e Organizador dos Captadores e Papeleiros de Porto Alegre. Às dezoito horas e vinte minutos, o Senhor Presidente agradeceu a presença de todos e, nada mais havendo a tratar, declarou encerrados os trabalhos, convocando os Senhores Vereadores para a Sessão Ordinária de amanhã, à hora regimental. Os trabalhos foram presididos pelo Vereador Airto Ferronato e secretariados pelo Vereador Décio Schauren, Secretário “ad hoc”. Do que eu, Décio Schauren, Secretário “ad hoc”, determinei fosse lavrada a presente Ata que, após distribuída em avulsos e aprovada, será assinada pelos Senhores 1º Secretário e Presidente.

 

 


(Obs.: A Ata digitada nos Anais é cópia fiel do documento original.)

 

 

 


O SR. PRESIDENTE (Airto Ferronato): Declaro aberta a presente Sessão Especial destinada à entrega do Título Honorífico de Cidadão de Porto Alegre ao Sr. Carlos Alberto Libanio Christo - Frei Betto. Esta homenagem é de iniciativa do Ver. Décio Schauren e teve a aprovação unânime dos Srs. Vereadores.

Passamos à composição da Mesa, convidando o Exmo. Sr. Prefeito Municipal de Porto Alegre Dr. Tarso Genro; Exmo. Sr. Carlos Alberto Libanio Christo, Frei Betto, homenageado; Exmo. Sr. representante da Procuradoria Geral de Justiça do Estado, Dr. Alberto Weingartner; Ilmo. Sr. Secretário Substituto de Educação do Município, Dr. José Clóvis de Azevedo; Ilmo. Sr. representante da ARI, Jornalista Firmino Cardoso; Ilma. Sra. Diretora-Geral do DEP, Dra. Lenora Ulrich.

Temos a satisfação de presidir esta Sessão em homenagem ao escritor, jornalista, filósofo e teólogo. Nosso homenageado tem pautado sua atuação pela defesa dos direitos humanos e pelo estímulo à educação popular.

Convidamos a todos, para que, de pé, cantemos o Hino Nacional.

 

(É entoado o Hino Nacional.)

 

O SR. PRESIDENTE: Nós registramos o recebimento de uma correspondência da Professora Mila Cauduro, Secretária Estadual da Cultura, que informa a impossibilidade de estar presente e cumprimenta nosso homenageado, a qual passamos às suas mãos.

Com a palavra o Ver. Décio Schauren, proponente da ação, para que faça uso da palavra. O Ver. Décio Schauren fala em nome de sua Bancada, o PT, e pelas Bancadas do PDT, PMDB, PTB, PFL, PC do B, PP e PPS.

 

O SR. DÉCIO SCHAUREN: Sr. Presidente e Srs. Vereadores. (Saúda os componentes da Mesa.) Eu entendo que o Título de Cidadão de Porto Alegre previsto na nossa Lei Orgânica deve ser concedido a pessoas muito especiais, e por isso, durante o meu 1º mandato, nesta Casa, apresentei apenas um Projeto de Título de Cidadão de Porto Alegre homenageando o nosso educador maior Paulo Freire. Neste 2º mandato pretendo igualmente fazer deste título o único do mandato, e o escolhido foi você, Frei Betto, é claro que não foi por acaso.

Frei Betto, o Capítulo nº 25, do Evangélio de São Mateus, tem um significado especial para você. Diz o seguinte: “Eu tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber, era forasteiro e me acolheste, estive nu e me vestiste, doente e me visitaste, preso e vieste ver-me. São estes os que Jesus escolheu para entrarem no seu reino.” Vejam que Jesus escolhe justamente os que têm um engajamento social, os que agem de forma concreta honrando o seu compromisso com a justiça social. Este foi o motivo central pelo qual propus o teu nome, Frei Betto, para receber a homenagem de Cidadão de Porto Alegre.

Senhor Presidente, demais membros da Mesa, senhores visitantes e convidados. Num período de pura repressão política aos movimentos sociais populares, Frei Betto não teve receio de praticar os ensinamentos de Cristo, mesmo sabendo da tortura a que eram submetidos os presos políticos e da especialização dos aparelhos repressivos em praticá-la com requintes cada vez mais sofisticados de sadismo. Mesmo sabendo que companheiros seus sucumbiram à dor e ao sofrimento, Frei Betto assumiu com muita coragem o compromisso com aqueles que lutavam pela emancipação política e democrática do povo brasileiro, acima do medo e das conveniências pessoais, Frei Betto, junto com outros frades dominicanos, como Frei Fernando, Frei Ivo, Frei Tito, passou da palavra à ação concreta. A própria ordem dominicana entendia ser impossível separar a fé cristã do compromisso social e por isso foi duramente golpeada pela repressão.

No início do ano de 1969, Frei Betto era chefe de reportagem da Folha da Tarde em São Paulo. Inúmeros conhecidos seus haviam sido presos e torturados. Um de seus colegas foi encarcerado sob acusação de pertencer ao “esquema de imprensa da VPR” - Vanguarda Popular Revolucionária. O cerco repressivo apertava. Frei Betto passou a viver clandestinamente. Primeiro em São Paulo, depois, a partir de maio de 1969, transferiu-se para São Leopoldo, passando a morar com os padres jesuítas, no Seminário Cristo Rei. No Rio Grande do Sul, Frei Betto ajudou a passar inúmeros perseguidos políticos para o Uruguai, ciente de que o auxílio a refugiados políticos era uma tradição da Igreja. Era um período difícil. A imprensa estava sob censura. As notícias eram truncadas ou falseadas. O assassinato de militantes políticos, nas salas de tortura, era atribuído a tiroteios nas ruas e as notícias eram fornecidas diretamente pelos órgãos de segurança. Receitas de bolos ou poemas de Camões substituíam as notícias cortadas pela tesoura do censor.

Foi no dia 04 de novembro de 1969, nos Jardins do Cristo Rei, que Frei Betto soube da prisão do estudante Camilo, em nome de quem chegavam as suas cartas. Sentiu que a sua liberdade estava em jogo. Subiu ao quarto andar do seminário, tomou sua sacola preparada para a fuga, com um falso passaporte, e desceu com toda a sua naturalidade as escadarias. Na portaria, assinou o livro de saídas, já com a intenção de despistar a polícia: “Frei Betto, Porto Alegre, volta às 19 horas”.

Cruzou o grande refeitório do Cristo Rei e saiu por trás, atravessando o bosque, para apanhar um ônibus na estrada lateral rumo a Porto Alegre. Enquanto chegava a Porto Alegre, a Polícia se preparava para aguardar o seu regresso às dezenove horas. Frei Betto procurou a Paróquia da Piedade, pedindo abrigo aos Padres Manuel e Marcelo, seus amigos, que o acolheram.

Como a casa era visada, dormiu na Sacristia da Igreja, naquela noite. Por motivos de segurança, Padre Marcelo o levou à casa das Irmãs de Jesus Crucificado, na Rua Castro Alves: “Este aqui é Frei Betto, estudante dominicano. Está sendo procurado pela polícia e não vamos entregá-lo às feras”. “Tudo bem, vamos guardá-lo aqui”, disse a Irmã Filomenana, sua corajosa hospitalidade. Ela o apresentou às outras irmãs sem que a maioria ficasse sabendo do motivo exato de sua presença naquele convento.

Foi nesse convento que aconteceu uma cena que se poderia dizer tragicômica. O próprio Frei Betto narra o episódio no seu livro Batismo de Sangue: “Após o jantar fui para a sala de TV, em torno da qual as irmãs acompanhavam atentas a novela enquanto novelos de lã rolavam vagarosamente em seus colos, puxados pelas agulhas prateadas, finas e longas, seguras por mãos habilidosas, como se travassem um duelo de esgrimas. O Jornal Nacional da TV Globo era precedido por três edições locais de várias regiões do País. O vídeo mostrou um homem baixo, rosto redondo, sombrancelhas cerradas, testa calva, terno escuro. Era o Coronel Jaime Mariath, Secretário de Segurança do Rio Grande do Sul. Anunciava que toda a polícia estava no encalço de Frei Betto e a família gaúcha, ameaçada pela presença desse perigoso terrorista no Estado, devia ajudar a encontrá-lo. Minha foto - cópia da que eu tirara para o passaporte - ocupou toda a tela da televisão. Fiquei subitamente pálido, constrangido, como se apanhado em flagrante delito; um mal-estar ocupou a sala, as irmãs mexiam-se nervosamente em suas cadeiras, cessando o tricô. Para comprovar minha periculosidade, o Coronel exibiu ‘fichas em código’ encontradas no meu quarto no Cristo Rei: Mt 11, 25; Mc 13, 11; Jo 16, 33. Eram referências bíblicas.”

No dia seguinte, numa reunião com os Padres Manuel e Marcelo e a Irmã Filó, Betto pediu para sair do convento imediatamente, pois fora “queimado” perante a comunidade da casa. Foi dali que Frei Betto foi para o sítio da família Chaves Barcellos, em Viamão, e de onde acompanhou as notícias dos jornais trazidos pelo Pe. Manuel. Sua foto continuava estampada. Os órgãos de segurança consideravam-no o chefe da ALN do Rio Grande do Sul, responsável pela fuga de Lamarca ao Uruguai e pelos contatos entre os Tupamaros e os combatentes brasileiros.

No dia 08 de novembro, apareceu no sítio o filho dos Chaves Barcellos dizendo que o sítio estava “queimado” e que iria levá-lo para o apartamento de um amigo. Betto estranhou aquela solidariedade toda de uma família abastada. E não era para menos. Seria preso na madrugada do dia seguinte (domingo, dia 09 de novembro de 1969) na própria mansão dos Chaves Barcellos e levado preso para o DOPS no Palácio da Polícia na Av. Ipiranga, após uma sucessão de lances de negociação entre o Governador Perachi Barcellos e o Cardeal Dom Vivente Scherer.

Depois descobriu que haviam sido presos, também, o Pe. Manoel, vários padres e seminaristas e o Irmão Cechin.

Os agentes dos órgãos de segurança exultavam, havia sido preso um “peixe grande”. O próprio delegado Fleury de São Paulo veio vê-lo.

No dia 27 de novembro, Frei Betto e outros religiosos foram embarcados, na Base Aérea de Canoas, para São Paulo. Enquanto isso seus companheiros dominicanos, como Frei Fernando, Frei Ivo e Frei Tito já haviam sido barbaramente torturados. Frei Betto esteve preso de 1969 a 1973 no presídio Tiradentes, do DOPS, em São Paulo sob a acusação de atividades subversivas.

Mesmo depois de quatro anos de prisão, Frei Betto não se intimidou, continuaou, de forma muito concreta e inequívoca, a exercer um trabalho profundamente engajado em favor dos pobres e oprimidos. Ao sair da prisão, foi morar numa favela em Vitória, no Espírito Santo. De lá para cá, aperfeiçoou seu engajamento por justiça e liberdade.

Nos últimos 15 anos trabalhou com educação popular no Sedes Sapientiae em São Paulo, no Instituto Cajamar, no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. É assessor nacional da CEB’S da Central de Movimentos Populares e da Pastoral Operária de São Bernardo do Campo.

Frei Betto é um cidadão acima das fronteiras territoriais e tem estado, sobretudo nos países latino-americanos, ao lado dos que trabalham pela construção do homem pleno e livre.

Tem 28 obras publicadas onde os aspectos políticos, educacionais, éticos e religiosos se entrelaçam. Muitas dessas obras como Batismo de Sangue, Fidel e a Religião, Cartas da Prisão, Diário de Puebla, estão traduzidas em vários idiomas.

Frei Betto voltou inúmeras vezes a Porto Alegre para proferir palestras e participar de seminários, discutindo educação, ética, política, socialismo e espiritualidade. Em todas essas participações em Porto Alegre, mostrou sempre muita admiração e carinho pela nossa Cidade.

O Título de Cidadão de Porto Alegre, que a Câmara confere ao Frei Betto, simboliza o reconhecimento da Cidade pelo seu corajoso engajamento na luta pela cidadania e pela emancipação política de nosso povo. É um reconhecimento à sua luta pela ética nesses tempos de corrupção e de crise moral, mas, também, é um desagravo do povo desta Cidade, pela sua prisão que aconteceu aqui na Capital gaúcha.

Estimado Frei Betto, devo dizer que falo em nome da minha Bancada, o PT, e também de outras Bancadas. Se os órgãos de repressão policial-militar o encarceraram e o consideraram terrorista (porque os opressores não suportam a Teologia de Libertação), o povo de Porto Alegre se sente orgulhoso de ter um irmão de luta valoroso como você, e o recebe de braços abertos, como cidadão de Porto Alegre. Muito obrigado. (Palmas.)

(Não revisto pelo orador.)

 

O SR. PRESIDENTE: Queremos registrar a presença dos Vereadores João Verle, João Motta, Henrique Fontana, Helena Bonumá, Lauro Hagemann, Clovis Ilgenfritz e Gerson Almeida, atual Secretário Municipal do Meio Ambiente. Registramos também, a presença do Dr. César Alvarez, Secretário do Governo Municipal; do Dr. João Carlos Vasoncelos, Presidente da EPATUR; da Profª. Esther Pilla Grossi, ex-Secretária Municipal da Educação e atual Presidente do GEMPA; da Sra. Íria Charão, Presidente do PT Municipal de Porto Alegre; a Dra. Dercy Furtado, ex-Deputada e ex-Diretora Geral desta Casa; do Sr. Carlos Salzano Vieira da Cunha, Presidente Estadual do Movimento Familiar Cristão; e demais membros do Movimento Familiar Cristão, aqui presentes; do ex-Deputado Estadual Selvino Heck; do Irmão Antônio Cechin, Irmão Marista e Organizador dos Captadores e Papeleiros de Porto Alegre; e da Sra. Imira Machado da Rosa, Coordenadora da Renovação Cristã do Brasil e demais membros dessa Organização.

Passamos a palavra ao Ver. Antonio Hohlfeldt, que fala em nome da sua Bancada, o PSDB.

 

O SR. ANTONIO HOHLFELDT: (Saúda os componentes da Mesa.) Eu queria, nesta Sessão, saudar, também, além de todos esses companheiros que aqui se encontram, muito especialmente, o Irmão Cechin. Eu tenho a honra de ter na memória, na minha profissão de jornalista, a oportunidade de tê-lo entrevistado, também nesses tempos difíceis, num tempo em que ainda se tinha uma imprensa neste Estado do Rio Grande do Sul, apesar da época da ditadura. Lá, no Correio do Povo, tive a oportunidade de conversar com o Antônio Cechin e, mesmo com todas as proibições, de passar adiante aquilo que ele tinha a dizer, mais ou menos nessa época, que o Décio recordava agora, da prisão do Frei Betto.

Acho que o Décio e esta Casa, ao propormos, não só o título, mas ao fixarmos a data de 03 de maio, de certa maneira, escolhemos uma data importante. Não sabíamos disso. Mas, acordamos, hoje de manhã, ouvindo o discurso também de um prisioneiro, de um prisioneiro que esta Casa também homenageou, graças a um Projeto do Ver. Clovis Ilgenfritz, com o Título de Cidadão de Porto Alegre. O companheiro Mandela saiu da prisão e da tortura para se tornar o primeiro presidente negro da África do Sul. E vamos concluir este dia, entregando este título ao Frei Betto. Como disse o Ver. Décio Schauren, na mesma cidade em que foi traído, que foi preso, na mesma cidade, hoje, resgatamos essa imagem de fidelidade fundamental a algumas idéias.

Ia dizer, meu prezado Frei Betto, que a tua vida, pelo menos os pedaços que já puderam ser públicos, dão não só um, mas vários romances e filmes de aventuras. Os livros em que narras isso, não só os relatos mais autobiográficos, como as próprias obras de ficção estão aí colocados. E o Ver. Décio Schauren recordou esses fatos no que toca mais diretamente a Porto Alegre; portanto, quero saltar isso, para lembrar que parece que há um detalhe importante que, em todos esses episódios, a gente pode identificar ao longo do tempo. É o que diria de uma espécie de uma corrente subterrânea que, independentemente de épocas, pessoas, partidos, enfim, de instituições, essa corrente consegue fluir, subsistir, permanecer, se comunicar. E por isso temos, de vez em quando, encontros como esse, lembranças como essa. Podemos reatar estas coisas de uma maneira nos animando, nos realimentando, começando de novo. Se não estamos agora na Ditadura, estamos, sem dúvida, num período extremamente difícil para este País. E vai se jogar uma tentativa de solução nos próximos meses. E acho que é importante, porque vamos uma vez mais disputar estas perspectivas e buscar as alternativas possíveis para este País que todos nós, cada um, à sua maneira, tem buscado contribuir e colaborar ao longo dos anos.

Dizia que, ao longo desses anos, tenho-me encontrado com Frei Betto nos lugares mais diferentes possíveis. Como também tive oportunidade, na condição de jornalista, de me encontrar com outro religioso católico a quem respeito profundamente, que é o ex-frei Leonardo Boff, que esta Casa também já homenageou.

Como jornalista, tive estas oportunidades, e hoje, como vereador, tenho a grata oportunidade de estar aqui para me dirigir ao Frei Betto, não só como amigo, mas em nome de companheiros de um partido político, em nome dos companheiros que, também, têm uma história, mesmo que às vezes discordemos delas, mas que têm também uma presença nessa história recente do País.

Queria lembrar, Betto, certamente vais recordar disso, que estávamos juntos num certo 21 de abril, em São Paulo, o primeiro Congresso Nacional da União Brasileira de Escritores e durante três ou quatro dias convivendo todos, escritores de todo o Brasil, no domingo à tardinha, porque 21 de abril era um domingo, o Betto sumiu depois do almoço. Quando retornamos, no final da tarde, nós já encerrando o encontro, o Betto chegou e disse: “Hoje, vão anunciar a morte do Tancredo.” Ele chegava do hospital onde estava o então Presidente Tancredo Neves. Realmente, ao retornar a Porto Alegre, vinha no avião e ouvi no noticioso exatamente o que o Betto antecipara para nós. Enfim, iam dar aquela notícia de um fato acontecido, um jogo que todos nós conhecemos bem hoje, mas que uma vez mais, o Betto por coincidência, por relações de família, este mineiro, tão pouco mineiro, porque dizem que o mineiro normalmente vive em cima do muro, acho que o Betto nunca ficou em cima do muro, esse mineiro tão contrastante com aquele outro mineiro que eu já referi, que foi Tancredo Neves, mas amigo da família de Tancredo, estava lá e, portanto, antecipava este fato.

Outro encontro meu com Betto foi em Havana, em Cuba, quando nós integramos os diferentes júris do Prêmio Literário Casa das Américas. Lá, uma vez mais, pude verificar efetivamente o Betto iria lançar o livro “Fidel e a Religião”, pela Editora Brasiliense, que havia também sido publicado em Cuba, incluía uma longa entrevista com Fidel a respeito do tema, da presença da Igreja Católica em Cuba e lá podemos também testemunhar a importância, o respeito do povo cubano que, de um modo geral, tinham ao Betto. Na sessão inaugural do Congresso foi exatamente ao Frei Betto que se concedeu a palavra. E ao longo daquela semana em que nós convivemos em Havana, porque depois cada um foi enviado para um lugar distante, trancado num hotel e lendo originais de tudo quanto era lugar da América, mas enfim, durante aquela primeira semana de Havana, em todos os encontros onde estivemos, inclusive com o Presidente da Casa das Américas, o poeta Roberto Fernandes, a gente tinha esta oportunidade de ver como as atenções se dirigiam ao Betto, no sentido de estarem preocupados: o que eventualmente se tinha para colocar aí através da palavra do Frei Betto.

Há muitas outras ocasiões, outros momentos em que nos cruzamos. Eu tenho tido a oportunidade, permanentemente, pela simpatia do Frei Betto, de receber sempre notícias dos seus novos livros e, além dos livros lembrados aqui pelo Ver. Décio, como, por exemplo, a obra mais teórica ou de depoimentos pessoais do Betto, gostaria de lembrar que o Frei Betto também tem livros de ficção para adultos e tem uma área que eu gosto muito, que é a ficção infantil, não é Betto? É muito importante. E na área da ficção infantil, o Betto estreou com o “Livro de Receitas da Mamãe Mineira”, relembrando as comidas da mamãe de Minas Gerais. E foi um livro que, pelo jeito, tem um sucesso muito grande, porque pelo menos na Editora FTB, onde nós somos companheiros, a Ione que é a editora oficial, quem cuida dos nossos textos, diz que realmente o sucesso do livro naquele primeiro momento foi incrível.

Então tem todos esses lados do Frei Betto. Eu acho que são lados, que longe de serem opostos, eles complementam e formam o retrato de corpo inteiro do Betto. Acho que seria impossível ser um religioso conseqüente, sem ser exatamente um humanista, um escritor, um homem que é capaz de prestar atenção a todos os aspectos da vida.

Eu lembro que muitas vezes, quando nos cruzamos em alguns lugares, as meninas olhavam para Frei Betto e diziam: “Ai que pena!” Com esse nome de galã Carlos Alberto, na época tinha uma novela, uma telenovela, e as pessoas diziam assim: “Mas que pena! Frei Betto não vai largar a batina?” E o Betto trancava a cara e respondia: “Não!”. E o pior que, convicto, para desespero das moças. Mas nós que trabalhamos com nomes, com palavras quando escrevemos, eu não sei por que Betto, mas sempre que encontrava o teu nome por extenso, esse Carlos Alberto Libanio Christo, esse “Libanio” me lembrava uma coisa que, religiosamente, é muito importante, que são as antigas libações. Acho que de uma certa maneira e a sério, os nomes, de repente, têm haver um pouco com a gente. Têm haver, no sentido de que eles, de uma certa maneira, refletem algumas coisas nossas, não cabalisticamente, não na soma de letras, sílabas, enfim, esse tipo de coisa, mas têm haver com o retrato que nós próprios fazemos de nós.

Eu acho que, de certa forma, a vida do Frei Betto foi sempre isso, foi uma libação permanente, foi uma oferenda permanente, foi uma memória permanente, foi um voltar-se permanente a Deus. E essa complementação do seu nome, presença do próprio Cristo no seu nome, eu acho que também, de certa maneira, é um atestado permanente desse papel que ele resolveu desenvolver.

Por tudo isso, me parece, prezado Frei Betto, que este momento aqui é muito importante. Eu fiquei ouvindo o Ver. Décio Schauren e, ao mesmo tempo, te observando. Fiquei imaginando que filme deveria estar passando na tua cabeça nesses momentos em que o Décio rememorava todos esses lances rocambolescos, para nós usarmos aquele personagem do Bolzon de Theriet, quando tu chegaste ao Rio Grande, de uma certa maneira, fugido; depois, sofreste todos esses episódios; conseguiste, durante um certo tempo, sobreviver; e, depois, enfim, foste preso. Deve ser realmente difícil esse tipo de experiência, porque por menos tempo que a gente fique à disposição, talvez esse sentimento seja uma coisa sempre inesquecível sabermos que os outros dispõem da gente de maneira radical e definitiva, a qualquer momento.

Sem fazer, evidentemente, comparações com a experiência do Frei Betto, guardei a experiência de um episódio de prisão em 1980, na área de Nonoai, junto dos índios, quando militávamos no Movimento da Associação Nacional de Apoio ao Índio. Na disponibilidade em que ficamos, eles podiam fazer qualquer coisa conosco, sem termos a menor defesa possível. Talvez seja isso que mais nos marcou. É evidente que a experiência do Frei Betto é muito mais forte do que essa, mas de qualquer modo também é importante. Assim como o Mandela, que teve a experiência de anos e anos de prisão, de tortura, de perseguição, de marginalização, enfim, começa a colocar em prática uma idéia. A sua eleição e a sua posse nos próximos dias é apenas o início de uma luta, às vezes até mais difícil.

Sabemos que a luta do Frei Betto tem dado certo, do ponto de vista do seu sucesso pessoal, da repercussão do seu trabalho e de algumas de suas idéias. A sua própria presença aqui nos mostra isso. Sem dúvida nenhuma, a homenagem de hoje não é um canto de vitória, mas sim a etapa de mais uma luta bem maior que todos nós queremos desenvolver. Por isso é importante a presença de todos os companheiros. Saí correndo da minha aula lá na PUC, porque eu não poderia, de maneira alguma, ficar ausente deste ato onde o Legislativo, através de alguns Vereadores, e o Executivo, pela presença do próprio companheiro Tarso Genro, se irmanam. Também acho importante a presença do Judiciário. Mais do que nunca, a Cidade se sente feliz porque tu aceitaste esta lembrança e esta homenagem. Muito obrigado. (Palmas.)

(Não revisto pelo orador.)

 

O SR. PRESIDENTE: O Ver. Décio Schauren fará a entrega do título ao nosso homenageado.

 

(O Sr. Décio Schauren faz a entrega do título.)

 

O SR. PRESIDENTE: Convidamos o Sr. Prefeito Municipal para que proceda à entrega da medalha ao nosso homenageado. (Pausa.) (Palmas.)

 

(O Sr. Prefeito procede à entrega da medalha.)

 

O SR. PRESIDENTE: O Sr. Carlos Alberto Libanio Christo - Frei Betto - está com a palavra.

 

O SR. CARLOS ALBERTO LIBANIO CHRISTO: Hoje, quando pensava nesta homenagem, descobri que, pelo menos neste aspecto, eu levo vantagem sobre Paulo, o Apóstolo. Paulo comprou o Título de Cidadão Romano, e eu recebo, de graça, o Título de Cidadão de Porto Alegre. Paulo e eu temos muitas afinidades. Ele diz, nas suas cartas, que não veio para batizar, e sim para evangelizar. E este versículo influiu na minha decisão de, embora tendo feito os estudos filosóficos e teológicos, não me tornar sacerdote.

Eu sempre aprendi, na dimensão da minha fé, que a minha vocação é de Irmão. Talvez tenha sido uma maneira de, também da vida religiosa, eu realizar uma busca inalcansável, porém permanente, em toda a minha existência, que é a proximidade com os mais pobres. Esta não é uma busca ideológica, não é nem sequer uma busca religiosa. Quando eu era criança, em Belo Horizonte, eu fui aluno de um grupo escolar onde a grande maioria dos meus colegas era pobre. Eu me sentia muito constrangido de ser um dos poucos na classe que trazia merenda de casa. E confesso uma certa inveja, quando eu via os meus colegas, na hora do recreio, se dirigirem à cantina da escola. Por que eu lembro isto? Porque hoje eu tive a alegria de almoçar aqui em Porto Alegre, com os mendigos desta Cidade, em frente a um dos mais luxuosos hotéis desta Cidade, o Plaza, nos fundos de uma igreja. Fui com o Irmão Antônio Cequin para uma experiência que sempre me lembra o banquete que Jesus descreve no Evangelho que o Rei mandou os servos saírem pelas ruas e convidar os pobres, os alejados, porque a esses era oferecido o banquete.

Essa dimensão dos pobres e dos oprimidos mais tarde se acentuou na minha cabeça e na minha vida através da Ação Católica. E foi a Ação Católica que aqui me trouxe, a Porto Alegre, pela primeira vez. Fui dirigente nacional do GEC, desde 1959 eu conheço o Irmão Antônio Cequin, que era o assistente da GEC de Porto Alegre. E, como eu, era militante, também, e dirigente da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de Belo Horizonte. Algumas vezes por iniciativa da União Brasileira de Estudantes Secundários estive no Rio Grande do Sul, onde muitas batalhas convivi com uma pessoa que vocês conhecem da vida política recente, que é o companheiro Aloísio Paraguassu. Várias vezes convivemos em congressos e eventos estudantis. Já em 1964 quando houve o golpe militar, eu era estudante de jornalismo no Rio e fui preso pela primeira vez.

Na madrugada de 06 de junho de 1964, o apartamento em que eu morava às custas da CNBB, dos dirigentes da Ação Católica, foi invadido pelos agentes da CENIMAR, às 4 horas da manhã. E como dormíamos num apartamento muito apertado, portanto com 2, 3 beliches em cada quarto, eu ocupava um beliche superior quando me cutucaram com uma metralhadora. Virei, convenci-me de que era um pesadelo, virei o rosto para a parede, até que um grito me fez cair na real e dar-me conta de que era a prisão. Fiquei por quinze dias preso, na Ilha das Cobras, no Quartel dos Fuzileiros Navais, no Rio. Dessa prisão não houve processo. No ano seguinte ingressei na Ordem Dominicana e me lembro que a primeira conversa que tive com meu superior, foi dizer-lhe que a Ordem para mim era meio e não fim, que o meu primeiro objetivo como cristão, como brasileiro e pessoa humana, era lutar pela justiça neste País. Eu morrerei feliz, se morrer como semente desta causa, ainda que não veja o Brasil de justiça e de liberdade. Tive a felicidade de ser acolhido por uma comunidade religiosa que dizia que este também era o seu objetivo, e que eu tinha toda a razão em deixá-la, no momento em que ela traísse este objetivo, por isto, até hoje, sinto-me plenamente em família, entre os dominicanos brasileiros.

Durante este período estive outras vezes em Porto Alegre, até que passei a auxiliar os estudantes perseguidos pela polícia e que necessitavam de abrigo ou de fuga em São Paulo, indistintamente, diferentes organizações políticas. Eu não estava interessado se eles estavam envolvidos em manifestações pacíficas ou operações militares, mas interessava que eram pessoas que lutavam contra o regime militar e, na medida de minhas possibilidades eu procurava ajudá-los, assim como o Vaticano ajudou tantos perseguidos do nazismo, ajudando tantos que participaram da resistência francesa, italiana e outros países europeus.

É uma questão de princípio, o asilo, este é uma tradição do Antigo Testamento, o direito de refugiar-se junto ao altar. Eu havia aprendido com esta tradição, que a um perseguido não se pergunta o motivo, desde que o perseguidor é promotor da injustiça, portanto, ao lado deles me coloquei, até que eu mesmo comecei a ser perseguido, tendo que refugiar-me, e busquei o Rio Grande do Sul como local onde eu vivia em semiclandestinidade. Passei a cursar Teologia no “Cristo Rei”, mas todas as minhas atividades de acolher pessoas, ou como costumo dizer entre amigos, eu me dedicava à tarefa de “contrabando de gente”, porque passava pessoas nas fronteiras do Rio Grande do Sul com o Uruguai e Argentina, todo o meu trabalho operacional para ajudar essas pessoas perseguidas a deixarem, clandestinamente, o Brasil, se deu em Porto Alegre. Sempre que venho aqui, rememoro os lugares que anonimamente eu freqüentava para ter encontros com pessoas que eu nunca havia visto antes na minha vida, mas que, mandados de São Paulo, eu cumpria a tarefa de ajudá-los a irem para o exterior e quem sabe, livrando-as da tortura e da morte. Muitas vezes, na Rua Dr. Flores, muitas vezes dentro do Cine Vitória vi filmes passarem na tela, enquanto eu tratava dos detalhes da fuga, das condições, caminhos, cuidados, cautelas que essas pessoas deveriam tomar, para que a fuga fosse exitosa.

Felizmente, as dez pessoas que aqui recebi conseguiram sair do País sem dificuldades. Só eu mesmo não consegui usar o próprio esquema que organizei.

Quando o Ver. Décio Schauren descrevia os acontecimentos, eu lembrava de alguns detalhes curiosos que não foram contados em meus escritos. Eu gostaria de evocá-los. Eu aprendi na prisão muitas coisas. Não desejo a prisão a ninguém, mas dela eu saí muito mais livre. A prisão me fez mais livre. Eu aprendi que o ódio prejudica a quem odeia, e não a quem é odiado. De modo que nunca guardei ódio, mágoa, sentimento de vingança dos meus carcereiros, torturadores, algozes, porque a minha luta não era contra pessoas mas contra uma situação de injustiça ditatorial.

Quando fui preso em Porto Alegre, houve um espanto entre os militares que me prenderam, porque a minha cara não correspondia ao que eles esperavam. Lembro que um coronel chegou na minha cela, aqui no DOPS e falou: “Você que é Frei Betto?” Respondi: “Sou eu.” E ele disse: “Mas que decepção! Eu imaginava um homem de 2 metros de altura, queixo quadrado, cicatriz no rosto.” Eu disse: “Coronel, isso é a imagem que a pecha de terrorista cria na cabeça dos senhores. Os senhores criam um fantasma e passam a acreditar nele.”

Quando fui levado à Base Aérea de Canoas, para ser transferido para São Paulo, eu pedi para me lavar no banheiro. E, depois de o sargento consultar o tenente, que consultou o capitão, que consultou o major, foi-me permitido ir ao banheiro. Eu tirei da sacola que trazia um sabonete, que estava fechado, lacrado, do comércio. Bastou isso para que o sabonete fosse interceptado a caminho do banheiro, levado para um muro distante do hangar que ocupávamos, fizeram um cerco de soldados e o oficial superior transferiu a um de patente inferior o cuidado de, com um canivete, delicadamente, desfazer o papel, para saber se ali dentro continha, realmente, um sabonete. Não bastando desfazer o invólucro, o sabonete foi retalhado em pedaços para saber se, quem sabe, continha algum sistema de código. É claro que isso, hoje, é hilariante. Mas reflete bem como que o Regime vai criando seus próprios fantasmas e passa a acreditar neles. E por isso não pode-se sustentar, porque não está calcado na realidade, está calcado numa ideologia de segurança nacional que divide a nação entre benfeitores e inimigos.

Posteriormente passei por oito diferentes prisões. Vivi uma experiência rara entre os presos políticos no Brasil. Dos quatro anos que fiquei preso, dois anos na condição de preso comum, passei por três penitenciárias comuns. Pelo Carandirú, em São Paulo, penitenciária do Estado, e, mais tarde pela Penitenciária do Presidente Wenceslau. Fui condenado, dois anos depois de preso, a quatro anos de cárcere. Recorri no Supremo Tribunal Federal, que reduziu a minha pena de quatro para dois anos no dia em que eu completava os quatro anos de cárcere. De modo que eu tenho dois anos de crédito com a liberdade. Esse período me fez acreditar que o Brasil merece ser um país livre e que essa liberdade, ou virá da organização da sociedade brasileira, ou jamais virá daqueles que detêm o poder; ela será uma conquista, ou não será.

Após a prisão dediquei a minha vida, o meu esforço, as minhas energias à organização de movimentos populares. O Brasil é hoje a segunda nação do mundo, em movimentos populares, depois dos Estados Unidos; movimentos de bairros, de vilas, de favelas, de luta pela água, pelo esgoto, pelo transporte, pela passarela, pela moradia, pela terra; movimentos ecológicos, movimentos de mulheres, negros, índios, portadores de HIV, homossexuais; movimentos de roça comunitária, farmácia comunitária, sacolão, enfim, em toda parte há movimentos populares. A diferença com os Estados Unidos é que lá esses movimentos não lograram firmar-se como alternativa política, e no Brasil, lograram, ou seja, no Brasil, criou-se nesses últimos vinte e cinco anos, e faz vinte e cinco anos que fui preso em Porto Alegre, neste ano, uma alternativa política, ou o que costumo dizer, um poder popular.

Hoje, o Presidente da República, seja quem for, não pode tomar nenhuma medida econômica sem se perguntar o que a CUT vai pensar dessa medida, ou como vai reagir o Vicentinho, Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista. Isso é uma conquista democrática. Amigos meus, no exterior, perguntam-se e me perguntam como é que se explica que, no Brasil, tendo tanta miséria, é o mais miserável país da América Latina, não haja nenhum movimento de luta armada, porque há luta armada no Peru, no México, na Colômbia, na Guatemala, e na minha cabeça a resposta é simples: é porque, Graças a Deus, logramos, ao longo desses anos, construir um poder popular, que dilatou o espaço democrático. A democracia, hoje, no Brasil, tem cheiro de povo, não é apenas uma democracia formal; é uma democracia em que, cada vez mais, setores da população influem no processo político, tem poder de barganha, de pressão e inclusive de eleição, de colocar os seus representantes dentro das instituições políticas. Por isso que confesso a vocês a minha alegria com esta homenagem, não a mim, mas a este processo do qual eu e tantos de vocês têm ajudado a construir através dos Movimentos Pastorais, dos Movimentos Populares, dos Movimentos Sindicais e dos Partidos Políticos Progressistas. É uma caminhada difícil, sofrida, mas é uma caminhada que também nos traz muitas alegrias. Eu confesso que tenho sido muito feliz na minha militância, tenho sido muito feliz no convívio com os trabalhadores, com companheiros do Movimento Sem-Terra, com operários do ABC, com os desempregados que são em número tão grande nas comunidades eclesiais de base.

Isso me faz feliz como brasileiro, isso me faz feliz como cristão, como pessoa e peço a Deus que me dê forças para continuar, não só eu, mas todos nós e todos os companheiros que encontramos nesses projetos comuns para que possamos, um dia, viver em um país em que o título de cidadão não precise mais ser dado a ninguém, porque ele será, enfim, uma conquista, um direito de cada um de nós brasileiros. Muito obrigado. (Palmas.)

(Não revisto pelo orador.)

 

O SR. PRESIDENTE: Nós queremos informar que Frei Betto estará proferindo palestra sobre a ética política aqui, na Câmara Municipal de Porto Alegre, no Salão Glênio Peres, com início às 19 horas e aproveitamos para convidar a todos os presentes.

Ilustres componentes da Mesa, queremos registrar, em meu nome, inicialmente, a satisfação de ter podido presidir esta Sessão e quero aproveitar para cumprimentar o Ver. Décio Schauren pela iniciativa desta homenagem, registrar em nome da Mesa Diretora da Câmara Municipal e de todos os Vereadores da Casa a nossa satisfação e cumprimentos ao nosso homenageado, o Frei Betto, e agradecer a presença das autoridades e todos os senhores.

 

(Encerra-se a Sessão às 18h20min.)

 

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